Uma semana passada da presença da escritora vimaranense Eva Machado no agrupamento, que muito cativou os alunos do 5.º ano, os alunos das turmas 5ºA e 5ºD, da professora Ana Paula Ribeiro, apresentaram a sua opinião acerca do encontro e foram unânimes em destacar a leitura emocionante que fez da história. Como não houve tempo para tudo nas sessões, decidiram enviar à autora algumas questões por email, a que Eva Machado simpaticamente respondeu em breve prazo. Aqui ficam perguntas e respostas:
Guimarães, 8 de Novembro de 2020
Bom dia professora Paula. Bom dia meni@s.
Aí vão as minhas respostas…
- Eu não gosto de escrever. No seu caso, o que a fez gostar de escrever?
Só esta pergunta já dava para escrever um livro. Eu não sei se sempre gostei de escrever mas sei que desde muito cedo devorava os livros que conseguia apanhar. Em minha casa não havia uma grande biblioteca mas o que havia estava à nossa disposição. O meu pai dava grande importância aos estudos e à escola. Gostava muito de ler e escrevia muito bem, desde a caligrafia cuidada até ao conteúdo do que queria exprimir. Daí que teve grande influência na minha paixão pela escrita. Ele passou-me esses valores, com o seu exemplo, mas depois eu tive de me esforçar para não os perder. A escrita, entre outras coisas, contribui para ginasticar o cérebro, para torná-lo forte e criativo. Escrever é como contar segredos a alguém invisível que nos escuta sempre. Podemos falar das nossas tristezas, alegrias, aventuras, amores… e no final, acredita, até ficamos mais leves. Escrever liberta e ajuda a pensar. Só precisa de solidão, silêncio e vontade de desenhar letras.
Que tal começares por escrever um diário, cheio de segredos que são só teus? Ou ter um caderninho onde apontas os teus sonhos e as coisas que gostas ou não gostas? O começo é que é difícil depois é como diz Fernando Pessoa, “primeiro estranha-se, depois entranha-se”.
- Como lhe surgiu a ideia de escrever livros para crianças?
Penso que a ideia começou a germinar durante o tempo em que trabalhei como professora mas deve ter nascido, lá longe, nas páginas dos livros que li na minha infância. Uma ideia ou um sonho até pode surgir de repente mas para se transformar num projecto, como um livro, precisa de tempo e de trabalho. É como uma planta que se vai regando e um dia desponta em flor. Acho que foi isso que aconteceu com o meu primeiro livro.
- Se escrever mais um livro, qual será o tema?
Pelo menos mais um sei que vou escrever porque o texto do 3º livro já está quase pronto, digo quase, porque enquanto não o enviar para a ilustradora estou sempre a tirar ou acrescentar coisas. É terrível! Este será também sobre bruxas, que, como imaginam, é um universo mágico sem fim.
- Quem é a Luna, a quem dedica “As bruxas no Toural”?
A Luna é a minha neta que fez este ano 6 anos, e que por sinal também gosta muito de livros e de ouvir histórias, o que me enche de alegria. Nunca adormece sem ouvir a sua história. Como entrou agora na escola está a começar a descobrir os segredos da escrita e da leitura e… adora a escola.
- Neste momento, a Eva Machado só se dedica à escrita?
Neste momento tenho tempo para fazer coisas de que gosto e que não conseguia realizar quando trabalhava. Faço algumas viagens (este ano por causa da pandemia não foi possível), dedico-me à escrita e ao trabalho associativo (sou presidente de uma associação, de Guimarães, a ASMAV). Como tenho uma neta, a Luna, e um neto (de três anos) o Lucas também me dedico aos dois, o que me dá muito prazer. O Lucas adora ouvir histórias de bruxas… embora ainda lhe inspire um pouco de medo as bruxas feias.
- Algum dia sonhou ser uma escritora famosa?
Ser famosa assim do género da J. K. Rowling, não, nunca me passou pela ideia. Mas dentro da minha dimensão estou satisfeita pois sou conhecida por centenas de alunos e alunas, das escolas por onde passei, que me dizem que gostam dos meus livros. Isso para mim é mais que suficiente.
- Por que razão decidiu escrever livros sobre bruxas?
A ideia surgiu quando tive de escolher um tema para o trabalho final de Mestrado, em Literatura Infantil. Sempre gostei de ler e investigar as questões ligadas ao género, aos direitos humanos e interrogava-me sobre o porquê de as mulheres serem tão mal tratadas ao longo da história. Depois a imagem da bruxa, como mulher real, perseguida e morta na fogueira, surgiu e acendeu a vontade de saber mais. Pouco a pouco fui descobrindo que por trás da imagem da bruxa feia e má (das histórias da Branca de Neve ou de Hansel e Gretel, por exemplo) estavam mulheres como nós com muita sabedoria e lutando pelo seu direito à instrução e a serem livres. E assim começou esta aventura no mundo fantástico das bruxas e dos demónios. E não sei quando terminará!
- Quando escreveu os livros, a ilustradora Margarete Barbosa acompanhou a escrita? Ou as ilustrações foram desenhadas mais tarde?
A Margarete não acompanhou a escrita. Quando o texto ficou pronto enviei-lho para ela o ler e para saber se queria fazer as ilustrações. A partir daí ela começou a criar as imagens com toda a liberdade. Durante este processo, que pode demorar alguns meses, vamos trocando informações e opiniões para que o casamento entre imagem e texto fique harmonioso e apelativo.
- De onde vem a sua imaginação?
Pergunta difícil esta! Mas na minha opinião deverá vir da curiosidade pela vida que nos rodeia, pelo contacto que temos com as pessoas e as suas histórias, pela leitura de livros, pela cultura em geral. Esse é o alimento que devemos oferecer à nossa imaginação para que ela se renove e recrie a cada dia. Tudo isso fica guardado nesse baú mágico que se chama memória e, um dia, nunca sabemos quando, toma a forma de um livro, de uma pintura, uma escultura ou simplesmente de mais sabedoria. Daí que a imaginação vem da forma como experimentamos a Vida e reflectimos sobre ela.
- Por que razão eram as bruxas tão temidas em Guimarães?
As bruxas eram (são?) temidas não só em Guimarães mas em todos os países, talvez por quererem ser livres quando isso lhes estava proibido, e haver o receio de estas ideias, perigosas, influenciarem outras mulheres. Muitas, quando não obedeciam a regras e leis, que iam contra os seus direitos, eram logo apelidadas de bruxas. Para ser chamada de bruxa, na idade média, bastava tão-somente querer aprender a ler, ter conhecimentos sobre as qualidades das ervas, recusar obedecer ao pai, ao marido ou à igreja. Para criar o medo inventou-se a imagem de que estas mulheres eram todas más, horrivelmente feias, e com poderes maléficos sobrenaturais. E por causa disso foram perseguidas, presas e mortas. A última mulher acusada de ser bruxa foi queimada viva em 1933, em Soalhães. Não vai assim há tanto tempo…
- Quais as plantas necessárias para fazer a poção do amor?
A poção de amor nasce sempre, e em primeiro lugar, no nosso coração através do carinho, da amizade, da paciência, da tolerância…mas sim dizem que há ervas que entram em algumas poções capazes de despertar sensações boas, como o amor. Algumas podem ser perigosas como a papoila, a artemísia ou a beladona, outras menos como o alecrim, a erva da alegria, o cravo-da-índia, a lavanda… depois tem toda uma preparação cuidada que vou deixar em segredo, à boa maneira das bruxas. Um dia, se aí voltar, falaremos disso com mais pormenor.
- Como aluna, a escola foi um momento importante para si?
Antes de responder tenho de vos dizer que até acabar o curso de Professora Primária, fiz os estudos durante o tempo da ditadura. A escola era bem diferente do que é hoje. Menos livre e com matérias menos interessantes. Mas sim, a escola foi muito importante para mim como mulher. Além dos conhecimentos, das amizades que conservo até hoje, trouxe-me também a possibilidade de escolher uma profissão, de ter independência financeira e de poder tomar as minhas próprias decisões. Algo que durante muitos anos foi um sonho impossível para as mulheres. Por ser tão importante, elas lutaram e ainda lutam pelo seu direito a ir à escola e a aprender. Ainda hoje há milhões de crianças e jovens que não têm, como vocês e como eu tive, esse direito à Educação. Por tudo isto, sim, posso afirmar que a escola é muito importante para nos preparar para a Vida.
- Pensa escrever mais livros sobre bruxas?
Sim. Tenho muita vontade de escrever sobre estas inquietantes e poderosas mulheres chamadas bruxas. Para mim é um tema sem fim. Em cada leitura, em cada investigação que faço, descubro sempre novas histórias destas mulheres. Por vezes são hilariantes e fantásticas outras vezes são muito dramáticas e tristes (como a da bruxa de Soalhães de que vos falei acima). Mas nada me faz desistir de as compreender e de as homenagear.
- Por que razão, nos dois livros, as bruxas tentaram seduzir o homem?
Talvez porque estamos a falar de um tempo em que as mulheres não tinham direitos nenhuns, nem direito tinham a escolher o futuro marido. Tudo lhes estava proibido… por serem mulheres.
- É muito difícil ser escritora?
É, digamos, um permanente desafio. Primeiro porque é uma actividade que se faz em solidão, depois porque põe à prova as nossas capacidades de escrita e de imaginação e isso às vezes é doloroso. E escrita e imaginação, têm de ser alimentadas através de pesquisa, leituras e esforço. Nada se faz sem trabalho. Escrever dá trabalho. Estudar dá trabalho. Mas digo-vos, dá muito prazer. O mais difícil é ter uma folha branca à espera das primeiras letras… mas depois, como por magia, alguma coisa acontece. A imaginação começa a voar até à grande floresta das palavras, onde vivem os sonhos e as aventuras fantásticas, e surge o… “Era uma vez…”
- Quando tinha a minha idade (10 anos) gostava da escola?
Acho que gostei. A Escola era para mim um tempo de liberdade e independência. Desde muito pequena que fui habituada a ir sozinha e a pé para a escola. E esses eram momentos em que estava por minha conta para viver as amizades e os prazeres da rua. Mas tinha de cumprir os deveres da escola sem contestar. Nisso o meu pai não perdoava! Tinha de cumprir, apresentar bons resultados e, acima de tudo, respeitar professor@s. E ainda bem que foi tão exigente comigo! Não quer isto dizer que fosse tudo bom. Não. Também tive, como vocês, momentos de tristeza, de zangas com amig@s, de professor@s de quem gostava menos, de matérias que me aborreciam, de castigos em casa, mas no geral e pensando nisso agora, digo-vos, de coração, que valeu a pena. A Escola é um espaço único e precioso. Aproveitem.
- Se tivesse de mudar o título "As bruxas e a água do cu lavado " qual seria?
É engraçado perguntarem isso porque eu sei que em termos de linguagem este é um título um pouco transgressor. Na altura tinha mais dois títulos possíveis: As Bruxas da Rua de S. Dâmaso e As Bruxas e o burro apaixonado. Se tivesse de mudar optaria por As Bruxas da Rua de S. Dâmaso, por ser o local onde se passa a história.
- Poderá algum dia escrever livros ainda mais "pesados" (com mais terror, mais drama...)?
Não digo que não. Quando se escreve tudo é possível. Por vezes surgem ideias que nós nem imaginamos de onde vêm. É também por ter algo de surpreendente e mágico que escrever faz bem. Quem sabe o que virá a seguir? Bruxas, diabos, lobisomem, vampiros, fadas… fico a aguardar, as minhas mas também as vossas histórias. Sei que são capazes de as criar.
- Como lhe surgiu a ideia de no livro "As bruxas e a água do cu lavado" enfeitiçar o burro?
O burro é enfeitiçado porque a recolha, feita pelo arqueólogo Francisco Martins Sarmento, falava exactamente de um burro que comeu o pão mágico e ficou caído de amores pelas três mulheres. Eu recriei a recolha, acrescentando algumas coisas, melhorando a linguagem mas respeitando a história que o povo contava.
Nota final: Muito obrigada pelas vossas, pertinentes e inteligentes, questões.
Um agradecimento especial à professora Paula pelo seu interesse em prol da motivação d@s alun@s.
Espero ter respondido de forma clara e adequada. Por vezes não é fácil dar respostas de uma linha ou duas… a escrita é como as cerejas…
Desejo muito que estejam bem de saúde, e que se apaixonem sempre pela vida, pela escola e pelos livros, porque como dizia o meu pai, conhecimento é poder e só isso nos faz crescer!
Um abraço do tamanho da Lua Cheia.
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